- Tetila, José Laerte Cecílio. 1994. Marçal de Souza Tupã'i : Um guarani que não se cala. Campo Grande: UFMS.
PREFÁCIO
"Sou uma pessoa marcada para morrer,
mas por uma causa justa a gente morre"
Marçal Souza
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Um fato extraordinário abalou a aldeia de Campestre, localizada no município de Antonio João, Mato Grosso do Sul, no dia 25 de novembro de 1983. Foi a execução do índio guarani Marçal de Souza (Tupã'I), a mando de fazendeiro.
A notícia espalhou-se rapidamente. Mais de duzentas cartas vieram de diferentes lugares do mundo, cobrando a elucidação do crime e a punição aos culpados.
Aculturado, esse guaraní, após atingir a maturidade intelectual, e tendo muito claras as vicissitudes historicamente vividas pelo seu povo, tornou-se muito requisitado, pois tinha habilidade para veicular idéias, princípios e valores fundamentais ao comportamento humano, a partir da ótica ameríndia.
Marçal viajou muito. Sua participação em eventos — simpósios, encontros, conferências — sobre a questão indígena foi tão freqüente a ponto de tornar-se uma espécie de "índio peregrino". Em 1980, por exemplo, participou de uma conferência da Organização das Nações Unidas; em 1982, proferiu discurso de despedida ao Papa João Paulo II, em nome das nações indígenas brasileiras.
Em sua peregrinação, Tupã'I (pequeno Deus) defendeu a união dos povos indígenas em torno de uma questão central: a preservação das terras que ainda lhes restam, por entendê-las vitais a seu povo.
Este índio guarani, que estudou oratória, que falava três idiomas, que permeou o universo da sociedade branca, desvendando-lhe códigos e valores e que foi membro-fundador da UNI (União das Nações Indígenas), membro fundador da Missão Caiuá de Dourados e do Conselho Indigenista Missionário, foi, de fato, um líder de seu povo, tal a capacidade que tinha em dirigir assembléias, argumentar, con-
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vencer, denunciar desmandos e opressões e reivindicar direitos.
Encontrando o sentido da vida dentro da luta, Tupã'I, embora convencido de que seu caminho não seria de rosas, seguiu em frente. Mesmo diante da indignação, da amargura e da dor, seguiu em frente. Mesmo prevendo o martírio como recompensa final, seguiu em frente.
As circunstâncias de sua morte, a repercussão nacional e internacional do crime, as razões da impunidade e, acima de tudo, sua trajetória de vida e o conteúdo de suas mensagens, são fatos que carecem do devido resgate para uma melhor compreensão da lógica do sistema vigente em relação ao tratamento que ainda hoje vem sendo dispensado as causas populares, sobretudo das minorías étnicas.
A idéia deste texto não surgiu do dia para a noite. Apesar da perplexidade com a eliminação de Marçal, ela resultou do encadeamento de uma série de fatos, a começar com a cidade onde há anos residimos, Dourados, a qual abriga uma importante área indígena próxima a seu perímetro urbano. Isso foi o bastante para nos colocar diante da realidade indígena. Depois foi a atividade acadêmica que exercemos, no campo das ciências sociais. Tal atividade, que sempre acaba imbuindo os seus profissionais do compromisso com os direitos humanos, despertou-nos para o campo da questão indígena, principalmente após a morte de Marçal, que por sinal morou na referida área durante boa parte de sua vida. Daí por diante pesou a participação que tivemos no Grupo de Apoio ao Índio de Dourados, no Conselho Estadual do Índio, além dos contatos com indigenistas como os irmãos Hilário e Aquiles Paulus, Veronice Lovato Rossato, Bartomeu Meliá, dentre outros.
A viabilização deste trabalho não foi tarefa fácil. Inicialmente, foram entrevistadas pessoas que conviveram diretamente com Marçal. Em seguida, procedeu-se a um levantamento minucioso das fontes documentais consideradas importantes, como entrevistas gravadas, correspondências, fotos, livros, revistas, anais de encontros, conferências, textos de filmes, além dos autos do processo criminal e de farto material da imprensa escrita.1
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Apesar da importância do personagem tratado, até agora não foi desenvolvida nenhuma pesquisa visando uma abordagem mais aprofundada sobre o mesmo. Fazê-lo seria preencher uma lacuna na historiografia ameríndia.
Nem tudo, porém, foi possível resgatar sobre Tupá'I. Seus freqüentes pronunciamentos, em épocas e locais diferentes, bem como as referências que lhe foram feitas dentro e fora do País, impuseram dificuldades, que sugerem a continuidade das pesquisas sobre este índio.