Algumas palavras de explicação (Taunay 1952)

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ALGUMAS PALAVRAS DE EXPLICAÇÃO
PREFÁCIO DA 1.ª EDIÇÃO


É a evocatividade o escopo principal dêste despretensioso e singelo Ensaio de Carta Geral das Bandeiras Paulistas. A lacunosidade e deficiência da documentação não permitiram, em numerosas circunstâncias, que lhe fôssem impressos os característicos da precisão. Daí a necessidade das restrições invocadas pelo título que lhe impusemos.

Realizado de 1921 a 1922, e impresso, após diversas revisões e numerosas correções, sai do prelo o nosso complexo tentame — pela primeira vez, no Brasil, e em tão larga escala, levado a cabo — a invocar para o seu autor, e dos seus examinadores, a benevolência dos reparos.

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Os estudiosos do nosso passado, que se detiveram a pesquisar os assuntos atinentes ao capítulo primacial da expansão geográfica do Brasil, todos êstes indagadores, de sobra sabem quão escassos, se não quase sempre nulos, mesmo, são os informes de ordem topográfica existentes acêrca da imensa maioria dos trajetos das nossas jornadas bandeirantes. Raríssimo, dificílimo mesmo, que os interpretadores dos elementos hauridos da documentação existente, consigam, em consciência, sair do terreno conjetural, até quando intentam reconstituir itinerários de grandes expedições relativamente recentes, realizadas já em eras em que o nosso país possuía vultosos núcleos civilizados e sôbre as quais existe abundante material documentário.

Frisante exemplo do que estamos a alegar é o que se dá com a grande bandeira do segundo Anhangüera, a de 1722-1725, coroada por notabilíssimo êxito: o encontro dos opulentos, placers auríferos goianos. Sôbre a marcha desta expedição, de importância máxima, existe documentação assaz extensa, graças à qual várias reconstituições se tentaram, cheias da maior verossimilhança e inspiradas por notável critério, como por exemplo, a de Calógeras. Apresentam, no entanto, formais divergências.

Há nos papéis referentes à jornada numerosas indicações de real valor topográfico. E mais — fato sumamente raro, nas relações de nossas entradas, empreendidas por homens fundamentalmente rudes — apresenta ainda o seu acervo valiosa documentação humana, como a tão interessante e conhecida narrativa do desertor José Peixoto da Silva Braga, recolhida pelo ilustre jesuíta Diogo Soares.

Mas a não ser quanto aos acidentes geográficos inconfundíveis e, assim mesmo, não quanto a todos, suas indicações toponímicas quase sempre de singular assonância, parecem na maioria dos casos, inidentificáveis; ou porque se não mantiveram os velhos nomes bandeirantes ou porque êles caíram em desuetude, substituídos por apelidos recentes como aliás era de esperar, em regiões então desertas e povoadas bastante após a passagem das bandeiras.

Se isto se dá com papéis da primeira metade do século XVIII, se ainda, no último quartel desta centúria, no Oeste próximo de São Paulo, numerosos rios "da Dúvida" havia, como no caso do Mogi Guaçu e do Pardo, confluentes, ou não confluentes, que esperar da precisão dos documentos dos séculos anteriores? Como deixar de os ter senão na qualidade de meros fornecedores de elementos conjeturais?

Quem, de modo insofismável, irretorquível, conseguiu demonstrar que Fernão Dias Pais, na sua famosa jornada esmeraldina aos serros de Itacambira, haja penetrado em território hoje mineiro, varando a Mantiqueira, pelos arredores de Bragança, como querem uns, ou a galgar a garganta do Embaú, como outros pretendem? Abundam os argumentos pró e contra as duas versões, mas a solução definitiva da controvérsia não a deram ainda os arquivos. Poderão algum dia oferecê-la?

E, no entanto, trata-se da mais notável expedição seiscentista, pelos resultados quase imediatamente dela oriundos: o grande rush dos paulistanos, da gente de Parnaíba, dos taubateanos, para o sertão dos Cataguás, de que surgiria o grande ciclo do ouro. E a êste deveria o Brasil entrar em nova e inesperada fase da sua evolução, período de capital importância, interna e externamente, que lhe valeria o renome mundial de terra de pactolos, tão opulenta, se não mais opulenta do que o México e o Peru.

E a circunstância ainda acresce de que a entrada de Fernão Dias Pais tivera origem oficial, determinada que fora por expressa instigação régia. Assumira ainda o caráter das emprêsas permanentes e, fato virgem nos anais do bandeirantismo, estabelecera um centro de operações — a modo das primeiras feitorias litorâneas dos navegadores quinhentistas —, núcleo que, apesar da enorme distância, conseguia comunicar-se com a sua base de abastecimento: São Paulo.

Em seu socorro faria o govêrno real partir outra expedição, esta inteiramente oficial, com ela conjugada, dispondo de elementos europeus adrede enviados ao Brasil e preparada com mil e um cuidados: a de D. Rodrigo de Castel Blanco. Pois bem, mau grado todo êste acúmulo de circunstâncias e do grande reliquat de papéis oriundo destas jornadas, célebres e malogradas, bem difícil se apresenta a solução satisfatória da reconstituição das marchas e contramarchas de Fernão Dias Pais e do oficial castelhano morto por Manuel de Borba Gato, em cuja ação depositava o govêrno do Príncipe Regente, futuro Pedro II, tanta confiança.

É um problema de análise indeterminada o que ocorre com tais itinerários, graças à ausência das determinantes geográficas, únicas dirimidoras das questões que se apresentem.

Têm os caminhamentos das bandeiras quinhentistas e seiscentistas absorvido os esforços laboriosos da erudição, inteligência e imaginação de muitos dos mais argutos e sabidos pesquisadores do nosso passado. Sucede, às vêzes, que, transviados pela sugestão ocasional da toponímia recente, deixem-se êstes autores arrastar a conclusões positivamente fantasiosas.

Assim se deu, quer nos parecer, com Orville Derby a propósito da grande bandeira de Nicolau Barreto, em 1603.

Deparando-se-lhe, nos papéis relativos a esta entrada notável, a palavra Paracatu, pareceu ao eminente geólogo americano e desventurado amigo do Brasil, poder irretorquìvelmente afirmar a permanência dos bandeirantes de São Paulo e daquele ilustre cabo de tropa, na região do grande afluente da esquerda do Alto São Francisco. E, para reforçar a asserção, recorreu à aproximação entre os nomes da bárbara geografia dos documentos da entrada, nos seus inventários de sertão, e os que sôfregamente intentou descobrir, inscritos em mapas europeus do século XVII, e em regiões correspondentes ao atual centro mineiro. Isto até em cartas não lusitanas. E conseguiu, provàvelmente por mero acaso, satisfazer o ingênuo desiderato, nova demonstração do velho e justíssimo brocardo: facile credimus quod volumus. Assim, num mapa do veneziano Coronelli, de fins da era seiscentista, descobriu um rio Guaibuig, afluente apontado do Alto São Francisco, no atual centro mineiro, que, exultante, identificou com o atual Guaicuí ou Rio da Velhas1.

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Nem refletiu quanto, da toponímia daquele mapa do cosmógrafo da República Sereníssima e da das demais cartas suas contemporâneas, é imenso fantasioso no tocante à América, sobretudo à Meridional. Nem lhe acudiu à mente a lembrança de que tais mapas, italianos, franceses, holandeses, alemães, inglêses, à porfia inculcam o curso de um Tietê, de um rio Anhembi, saído da vila de São Paulo e desaguando no Cabo Frio; afirmam a existência do grande lago de Eupana, de onde fluem o Paraná, o Paraguai, o São Francisco e o Rio Real, ao penúltimo paralelo; mencionam a localização amazónica, e subequatorial, do enorme lago de Parima, a cuja margem implantam a maravilhosa cidade de Manoa, deslumbrante capital do reino do El-Dorado. E êste, o antigo fascinador de Gonçalo Pizarro, Orellana e Sir Walter Raleigh, era então, ainda em fins do século XVII, a obsessão dos flibusteiros. E viria ainda a ser futuramente de mestre Cândido, discípulo do ótimo Dr. Pangloss…

Que valor, pois, podem ter as indicações toponímicas de semelhantes mapas? Se das costas sul-americanas consignam nomenclatura referta de extravagâncias e invencionices, secularmente repetidas, quiçá desde os dias de Juan de la Cosa, que pensar da do interior, se tais cartas, em sua imensa maioria, tão atrasadas são que até mostram desconhecer a existência da vila de São Paulo?

Fascinado, porém, pela paronímia de Guaibuig e Guaicuí nada mais viu Derby do que a descoberta de um argumento que lhe podia ser altamente valioso.

Tôda a sua argumentação erudita, e trabalhosamente coligida, parece-nos sobremodo expugnável depois das novidades por Ellis encontradas na documentação municipal de São Paulo e de onde deduziu lógicas conclusões diametralmente opostas às do sábio geólogo. Afirmam êstes novos elementos documentais, com outra solidez de aspecto, que Nicolau Barreto se encaminhou de São Paulo para rumo de sudoeste, em direção às margens do Pequiri e do Paraná, quando Derby contemporâneamente o fazia marchar para noroeste em direção ao Alto São Francisco.

Objeções de valor idêntico às que Ellis pôde aduzir para o caso da entrada de 1603, poderão, de um momento para outro, surgir, do recesso dos arquivos inexplorados, destruindo as hipóteses penosamente engendradas, na meditação e no trabalho, por eruditos de alto valor, como, entre outros, se dá com o caso de Knivet e Teodoro Sampaio, por exemplo.

Foram estas considerações que nos levaram a banir qualquer idéia de traçar, em nosso Ensaio de Carta Geral das Bandeiras Paulistas, todo e qualquer itinerário de sertanistas. Fôsse êle inculcado, ou mesmo abonado, pelos mais ilustres dos cultores de nossa história, ou até mesmo, decorrentes de pesquisas próprias, levadas a cabo para a confecção da nossa História Geral das Bandeiras Paulistas…

O número avultado de expedições, consignadas no nosso mapa, traria, além de tudo, o mais inextricável, inútil e antiestético enovelamento de linhas. Dúzia e meia, talvez, de tais caminhamentos, projetados sôbre a vasta superfície de uma carta do Brasil, na Itinera botanicorum de Martius, já provoca, em muitos pontos, a nítida impressão de emaranhamento. Que seria êste, no nosso caso, para centenas de insignificativos e aleatórios trajetos bandeirantes?

Assim não hesitamos, restringimo-nos a inscrever os nomes dos chefes das entradas nas vizinhanças prováveis das terras em que elas operaram. E, obedecendo a êste critério simplista, colocamos, ao lado dos apelidos dos cabos de tropa, as datas aceitas como as de sua permanência no sertão. Foi em diversos casos, difícil realizar tal desiderato. O número dos bandeirantes conhecidos, e dos nomes exatos das regiões que palmilharam, é muito restrito, se o compararmos ao quantum das entradas realizadas no sertão. Milhares e milhares foram as expedições saídas de São Paulo, de Parnaíba e outros focos do bandeirantismo. De quantas nos ficaram a prova material da realização das jornadas de que há noticia? De escassas centenas.

Procuramos coligir o maior número possível de dados sôbre estas bandeiras, tentando proceder ao seu mais acurado arrolamento, a fim de inscrevermos em nosso Ensaio um máximo de nomes.

Fomos, contudo, forçados a afastar do nosso mapa os apelidos de vários vultos notáveis do sertanismo pelo fato de não conseguirmos descobrir referências geográficas documentadoras da localização de suas jornadas.

Em relação às expedições portuguêsas e brasileiras, extrapaulistas, de grande relêvo ou de importância apreciável, procedemos como no caso das de São Paulo.

O aprofundamento do exame das peças arquivais, que de alguns anos para cá, se avoluma constantemente, revelou os feitos, por vêzes memoráveis, de sertanistas ainda há pouco desconhecidos. Se é verdade que se não demonstrou ainda, por exemplo, a veracidade da versão lendária da chegada de António Rapôso Tavares ao litoral do Grande Oceano, idéia muito mais exata se faz agora da magnitude da emprêsa prodigiosa do homeríada de 1648-1651, graças à adução dos papéis revelados por Washington Luís, Pablo Pastells, Alfredo Ellis e, ainda ultimamente, por J. Lúcio d'Azevedo (ao publicar longa e preciosa carta inedita de António Vieira, sôbre o espantoso périplo do senhor de Quitaúna) e Paulo Prado.

Foi assim que se ampliaram notàvelmente os depoimentos relativos ao bandeirantismo com as acuradas e magníficas pesquisas de Alfredo Ellis, na documentação municipal e estadual de São Paulo, a extensa e preciosa busca realizada no Arquivo Nacional por Basílio de Magalhães, as descobertas tão valiosas de Borges de Barros, Brás do Amaral, Feu de Carvalho, Francisco Negrão, Venceslau de Almeida, nos acervos estaduais da Bahia, Minas Gerais, Paraná e Alagoas; de Alberto Lamego e Studart, em arquivos ultramarinos; de Oliveira Viana, nos papéis referentes às lutas do Sul, a que se ajuntaram as que realizamos no Arquivo General de Índias em Sevilha, e as de Teschauer, em diversos arquivos europeus e americanos, etc.

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No nosso desvalioso Ensaio procuramos condensar as indicações dos velhos cronistas como Pedro Taques e Frei Gaspar da Madre de Deus, dos autores jesuíticos de antanho como Techo, Jarque, Charlevoix e tantos mais, dos escritores platinos e paraguaios, os ensinamentos dos mestres como Varnhagen e Capistrano de Abreu e tantas outras autoridades brasileiras, ajuntando-lhes os resultados das pesquisas modernas e contemporâneas.

A êste acervo o decurso dos anos largamente acrescentará, tal a massa de documentos ainda não explorados, capazes de fornecer elementos novos aos fastos do bandeirantismo.

Assim se ampliará o nosso modesto e singelo tentame de hoje.

Incompleto, lacunoso como é — e não podia deixar de o ser — foi o nosso principal intuito, reiteramo-lo, evocar a ação conjunta dos homens de ferro que, ao patrimônio territorial de nossa pátria — valada para Oeste, pela linha tordesilhana — tão grandemente dilataram, levando ao âmago do continente americano as lindes do domínio lusitano.

Esparsos pela superfície da carta, que traduz a vastidão das terras brasileiras, assumem os nomes dêstes conquistadores da selva e construtores do Brasil a feição das réguas lapidares das inscrições vazadas no bronze glorificador dos grandes feitos humanos.

AFFONSO DE E. TAUNAY.
Tabajara (Limeira), 27 de junho de 1926.

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