A obra de Karl von den Steinen (Baldus 1940)
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A OBRA DE KARL VON DEN STEINEN

Karl von den Steinen nasceu em Mühlheim, a 7 de março de 1855. Estudou medicina em Zürich, Bonn e Strassburgo, especializando-se em psiquiatria em Viena e Berlim. De 1878 a 1879 praticou como assistente na "Charité", o maior hospital desta última cidade. Logo depois empreendeu, com o intúito de proceder a pesquisas medicinais, uma viagem ao redor do mundo, que durou de 1879 a 1881. Encontrou-se, então, em Havai, com Adolf Bastian, o grande explorador, pai da etnologia moderna. Acompanhou-o em várias visitas aos indígenas. Em 1882, von den Steinen participou de uma expedição meteorológica à Georgia Antártica. Voltando desta viagem chegou a Montevidéo em setembro de 1882, resolvendo aproveitar a oportunidade para fazer uma exploração no interior da América do Sul.

Assim começou uma façanha de máximo alcance, especialmente para a geografia e a etnografia. Karl von den Steinen se achava em companhia de seu primo Wilhelm von den Steinen, merecedor de referências pelos seus desenhos de personagens e paisagens, e do dr. Otto Clauss, que prestou excelentes serviços como cartógrafo e meteorólogo. Os trabalhos etnográficos e antropométricos ficaram a cargo do chefe da expedição.

O plano consistia em descer o rio Xingú, desde as cabeceiras, até a foz. Êste projeto, pela sua importância para a comunicação de Mato Grosso com o Pará, recebeu o auxilio do então presidente da província de Mato Grosso, barão de Batoví. No fim de maio de 1884, a expedição chefiada por Karl von den Steinen partiu de Cuiabá, acompanhada de um destacamento militar sob o comando do capitão Francisco de Paula Castro. No fim de outubro alcançou Belém do Pará.

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Antes desta viagem, o Xingú era conhecido só até 4°5'1", graças à expedição do príncipe Adalberto da Prússia em 1843. Dêsse ponto até o rio das Mortes, isto é, cêrca de 15° de latitude sul, tudo era incógnito. A penetração dêsse vasto território não foi sòmente um dos maiores sucessos geográficos do século passado, mas levou também à descoberta de uma série de tribos de diferentes línguas, sem ainda qualquer influência da nossa civilização.

Êste fato foi bem frisado no necrológio de Karl von den Steinen, publicado por Erland Nordenskiöld no "Journal de la Société des Américanistes'', tomo XXII, Paris, 1930. Escreveu o grande etnógrafo sueco: "Um pequeno número de exploradores, como, por exemplo, Chandless e Rondon, visitaram tribus de índios que nunca tinham visto brancos, mas essas tribus, não obstante, tinham sido influenciadas indiretamente pela civilização dos brancos. É preciso remontar à literatura do século XVII para encontrar relatos sôbre índios que não sofreram influência alguma dos brancos, como os Bakairí e outras tribus do Xingú, descobertas por von den Steinen nas suas expedições. Principalmente após a sua segunda viagem, von den Steinen soube, de maneira magistral, demonstrar o valor de suas descobertas. Como seriam os nossos conhecimentos da história da civilização da América infinitamente mais pobres, se qualquer outro explorador tivesse percorrido, em primeiro lugar, o rio Xingú! Por exemplo, um explorador sem outra intenção que a de encher as manchas brancas do mapa do mundo com nomes de rios ou de montanhas. Os rios e montanhas ficam, mas os povos primitivos desaparecem ou, pelo menos, perdem seu caráter particular, caráter êsse que nos revela a sua história, isto é, uma parte da história da humanidade''.

Dos resultados linguísticos da viagem de 1884, ressalta pertencer a tribu dos Bakairí à família linguística karaíb, cujos representantes principais eram conhecidos, até então, só ao norte do Amazonas, tendo-se estendido, pouco antes da chegada de Colombo, sôbre as Guianas e Venezuela, até as Antilhas. Pelo vocabulário recolhido entre os Bakairí, von den Steinen chegou à conclusão do êrro da hipótese rigorosamente sustentada por d'Orbigny e considerada muito provável por von Martius, segundo a qual os Karaíb procederam dos Tupí-Guaraní. Isso o induziu a importantes modificações na classificação linguística de muitas tribus sul-americanas proposta por von Martius.

A descrição de sua primeira viagem ao Xingú e a elaboraração do material cientifico nela recolhido foram publicadas por Karl von den Steinen, em 1886, na obra clássica e de etnografia e etnologia brasileiras, intitulada "Durch Central-Brasilien". Os capítulos dêsse livro, que se referem a Cuiabá, apareceram traduzidos em português por Capistrano de Abreu, no apêndice à obra de Herbert H. Smith, "Do Rio de Janeiro a Cuiabá", São Paulo, 1922. Anota o eminente historiador brasileiro: "'A tradução de "Durch Central-Brasilien" começou a ser publicada, sob o título "Na gêma do Brasil" no número 203 da "Gazeta de Notícias", de 22 de Julho de 1888 e prosseguiu nos números 204-215, 217, 218, 220, 222, 225, 231, 234, 254, 261, 264, 267. Foi suspensa no número 302, 29 de Outubro. Ferreira de Araujo, que concordára no aproveitamento da composição para

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dar em separata o delicioso volume do cintilante cientista alemão, mudou de idéia e a versão parou a meio caminho. A parte vertida compreende as primeiras 115 páginas do original alemão".

Já nêsse seu primeiro livro sôbre o Xingú, von den Steinen salientara a necessidade de continuar-se as pesquisas etnológicas na região por êle percorrida e na América do Sul em geral. Lemos nas páginas 326 e 327 dessa obra: "Uma estrêla excepcionalmente favorável conduziu-nos a um caminho que nos pôs em contacto com representantes de todos os mais importantes tipos tribais. A êsse respeito, o Xingú supera a tôdos os afluentes do Amazonas. E por essa razão cumpre estender a investigação agora começada numa pequena parte dos índios do Xingú, primeiramente sôbre o Kulisehu, tirando o veu, pouco a pouco, de tôda a paisagem ainda rica de mistérios…

"Não há metais, nem cães, nem bebidas embriagadoras, nem bananas! Eis a verdadeira idade da pedra entre tribus cujos parentes vivem espalhados sôbre quase dois terços do continente sul-americano. Eis, por conseguinte, no estado primitivo, os principais tipos de tribus cujos parentes, em outras regiões, já se acham mais ou menos infuenciados por nossa civilização e, por isso, sòmente acessíveis ao estudo, em condições impuras. Eis, por fim, um campo preciosíssimo de investigação, situado no território restrito que se localiza entre a cachoeira de Martius e o divisor das águas no sul. Não é claro como a luz do sol que a província de Mato Grosso possue tesouros maiores do que oiro e diamantes?

"E — se queremos focalizar um ponto de vista mais alto — onde valerá mais a pena estudar a prehistória dos homens, do que justamente na América do Sul?

"Seja a população primitiva definida antropològicamente, como proveniente de um único tronco primário, seja ela considerada como procedente de vários troncos, em todo caso possuía, até o século XVI, a enorme superfície do continente sulamericano, que é o mais afastado dos centros culturais do Velho Mundo e de mais difícil acesso às suas influências. Uma ponte estreita pelo istmo de Panamá, e uma estrada em etapas, a meude interrompida, pelo caminho das Antilhas. A América do Sul quase não se ligava à América do Norte tão pouco pelo menos como o Alaska à Sibéria ou a Groenlândia à Islândia. Nem sequer havia relações entre o império dos Incas e os povos de Anahuac e Yucatan.

"Num campo que não fôra mais favorável às investigações se tivesse sido adrede preparado para uma experiência pura e premeditada da etnologia, o europeu encontrou cidadãos regulares, que possuíam a "escritura de nós" e autores dramáticos, ao lado de nômades antropófagos que dormiam embaixo de fôlhas de palmeira, não conhecendo sequer o algodão e, menos ainda, os metais, e cuja expressão linguística, se bem que injustamente classificada como "gargarejo surdo", era, sem dúvida, muito pouco desenvolvida. Falhando a experiência da América do Sul, não haverá mais esperança em parte alguma, de resolver o problema do processo da escalada do degrau inferior para o superior".

A estas palavras sucedeu, um ano mais tarde, a prática, isto é, a segunda expedição de Karl von den Steinen ao Xingú. A descrição e os resultados desta viagem de 1887 foram publicados, em 1894, na

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célebre obra intitulada "Unter den Naturvölkern Zentral-Brasiliens", cuja versão portuguesa foi inserta nesta revista. É principalmente êsse livro a que se refere Nordenskiöld quando escreve em seu necrológio: "Folheando qualquer manual de etnografia, história das religiões, sociologia, psicologia, história das plantas cultivadas etc., encontramos sempre o nome de Karl von den Steinen e, muitas vêzes, algumas linhas dêsse homem de gênio, que inspirava tratados inteiros a outros".

Em 1897, Karl von den Steinen visitou as Ilhas Marquesas, dedicando-se, especialmente, ao estudo de sua arte singular. Do enorme material recolhido nessa viagem resultou a obra monumental, em três volumes, "Die Marquesaner und ihre Kunst (Berlim, 1925, 1928).

Foi essa a última publicação de Karl von den Steinen antes de sua morte, a 4 de novembro de 1929, em Cronberg, povoação do Taunus, na Alemanha Central. De suas obras referentes à América do Sul, destacam-se, além das mencionadas, as duas monografias linguísticas "Die Bakaïri-Sprache", Leipzig, 1892, e "Diccionario Sipibo (Rio Ucayali)", Berlim, 1904. Numerosos outros trabalhos acham-se indicados na bibliografia de Karl von den Steinen, publicada no tomo citado do "Journal de la Société des Américanistes".

Assim como a viagem ao Xingú em 1887 representa o início das expedições puramente etnográficas na América do Sul, foi Karl von den Steinen o primeiro a considerar os índios brasileiros sem qualquer preconceito e orientado sòmente pela vontade de ver o humano em todos os homens, de vê-lo com idéias largas e férteis, idéias de espírito agudo e idéias de grande coração.

Não queremos mencionar, aquí, os nomes dos autores dos séculos XVI, XVII e XVIII, que se ocuparam com êsse tema. Em todos êles, a capacidade de observação era turvada por determinados interêsses materiais ou espirituais. Tinham de apresentar o índio como produto do inferno e mais féra do que gente, ou como pecador arrependido e digno de misericórdia, ou como ideal do homem no estado da inocência paradisíaca, segundo quisessem, conquistadores e colônos, escravizá-lo, ou extinguí-lo, missionários, cuidar dêle, salvando-lhe pêlo menos a alma, e, estetas românticos, divinizá-lo.

Sejam indicados, aquí, somente nomes de autores do século passado, isto é, da chamada época da ciência natural, que também foi, por assim dizer, o berço da formação intelectual de Karl von den Steinen. É o tempo da reação contra o hedonismo do século XVIII, época em que os grandes viajantes procedem, na maior parte, da medicina e da biologia, a época que faz nascer e dominar as teorias da seleção e evolução de Darwin, aplicadas por Spencer à sociologia humana. Dêsse século originou-se a etnologia moderna, a qual, porém, ainda não conseguira libertar-se por completo, de considerar os povos naturais segundo as normas morais européias. Por isso, von Martius, o fundador da etnografia brasileira, que julgou os índios como raça degenerada, falou dêles, não raramente, até com desprêzo. Francisco Adolpho de Varnhagen, o autor da "História Geral do Brasil" olhou-os com verdadeiro ódio, condenando qualquer filantropia com que fossem tratados. Seguiu-lhe as pègadas outro conhecido filho dessa época, a quem especialmente a zoologia do Brasil deve imensamente, o antigo diretor do Museu Paulista, Hermann von Ihe-

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ring. São êsses três, os nomes dos representantes científicos do século XIX, que, a respeito dos índios, sofreram os preconceitos de sua época.

Com Karl von den Steinen, porém, surgiu aquela falange brilhante de etnógrafos viajantes, como Paul Ehrenreich, Max Schmidt, Koch-Grünberg, Fritz Krause e Curt Nimuendajú, que viu e apresentou o habitante primitivo das selvas brasílicas assim como êle é, quer dizer, não sòmente apontando suas boas qualidades, mas também focalizando tudo o que nos podia parecer defeitos e falhas, sem deixar, é certo, de procurar compreender e explicar as suas causas. Surgiu entre os que se dedicaram ao estudo dos povos naturais do Brasil, o ponto de vista rigorosamente científico, isto é, sem valorizações e desvalorizações, sem concessões a ideologia de qualquer espécie. O livro, cuja tradução vem sendo apresentada aquí, serviu-lhes de guia.

Naturalmente, êsse famoso tratado da terra e gente do Xingú auxiliava especialmente aos exploradores dêsse rio e de suas tribus. Entre as numerosas expedições àquela região, que sucederam às viagens de Karl von den Steinen, destacam-se as de Herrmann Meyer em 1896 e 1899, dedicadas à descoberta e ao levantamento dos afluentes ocidentais do Xingú, isto é, dos rios Jatobá e Ronuro, e a investigações etnológicas no território compreendido entre os rios Kulisehu e Kuluene, chegando a obter informações sôbre uma província cultural até então desconhecida, situada ao nordeste, isto é, no rio Paranaiuba.

Fritz Krause ("Forschungsaufgaben im Schingu-Quellgebiet", Tagungsbericht der Gesellschaft für Völkerkunde, Leipzig, 1936) enumerou as diversas expedições ao Xingú e a literatura a respeito. No mesmo trabalho, o autor apontou as inúmeras possibilidades para novas investigações no El-dorado etnológico descoberto por Karl von den Steinen. A estas possibilidades pertence também a exploração da região entre os rios Kuluene e Araguaia, como recentemente apontamos (cf. Herbert Baldus: "Uma ponte etnográfica entre o Xingú e o Araguaia", Revista do Arquivo Municipal, XLIII, São Paulo, 1938).

Hoje, na época do avião e do rádio, as garantias técnicas para a realização de explorações naqueles sertões são muito maiores do que eram no tempo de Karl von den Steinen. O que falta, em geral, é pôr o avião e o rádio à disposição daqueles que podem incumbir-se dessas tarefas.

Mas, seja como for, os estudos etnológicos estão em pleno progresso no Brasil. Um sintoma seguro disso é a presente edição promovida por uma instituição pública.

Assim, a obra de Karl von den Steinen indicará ainda a muitos etnólogos o caminho no Brasil. E, esperamos, aumentará no povo brasileiro o amor pela sua bela pátria.

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