- Baldus, Herbert. 1953. Prefácio. In Harald Schultz, Vinte e três índios resistem à civilização, p. 7-8. São Paulo: Edições Melhoramentos.
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PREFÁCIO
Harald Schultz, nascido em Pôrto Alegre, no ano de 1909, é um homem que dedica sua vida aos índios. Isso não significa apenas que estuda os silvícolas, mas ainda que sofre por êles, com êles, e encontra a felicidade entre êles.
Como pesquisador já tem longa fôlha de serviços. Suas publicações científicas saíram na "Revista do Museu Paulista", em "Sociologia" e na "Revista do Arquivo Municipal". Depois de ter trabalhado no sertão como funcionário do Serviço de Proteção aos Índios, estudou na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, sendo então nomeado Assistente de Etnologia do Museu Paulista. Em 1946 e 1947 visitou comigo os índios Kaingang do rio Ivaí e de Icatu e os Karajá do rio Araguaia; estêve depois entre os Krahó, de Goiás, entre várias tribos do Território do Acre e, em 1951, entre os Kaxinaua do Peru.
Seu batismo de fogo como indianista, seu primeiro convívio íntimo e prolongado com uma tribo, deu-se em 1943 e é descrito no presente livro.
Os Umutina do alto Paraguai, chamados de "Barbados" pelos brancos por causa do cavanhaque que deixam crescer, não são muito conhecidos. Em 1928 Max Schmidt passou um mês entre êles, estudando principalmente sua cultura material e sua língua. Apontou as profundas diferenças que separam aquêles índios dos Bororo. As respectivas publicações do viajante alemão, saídas em 1929 e 1941, não foram, porém, consideradas nem citadas na parte etnográfica do Handbook of South American Indians, onde, no volume 1, de 1946, encontramos como única referência aos Umutina apenas duas linhas (pág. 419), classificando-os como Bororo, localizando-os geogràficamente e designando-os como "pacíficos desde 1913". Na parte lingüística do mesmo manual (vol. 6, Washington, 1950), os dois trabalhos de Schmidt são mencionados, mas o idioma umutina continua fazendo parte do grupo bororo (pág. 282).
As viagens àqueles índios do alto Paraguai, realizadas por Schultz em 1943, 1944 e 1945, foram necessárias para a Etnologia do Brasil e deram bons resultados. Não apenas tirou uma das melhores fitas cinematográficas até hoje feitas numa tribo sul-americana e as ótimas fotografias reproduzidas no presente livro, como organizou também uma coleção de artefatos que constitui motivo de orgulho para o Museu Paulista e anotou importantes observações etnográficas e dados lingüísticos que serão brevemente publicados em revistas especializadas.
As páginas a que tenho a honra de prefaciar representam uma mina para o estudo dos nossos silvícolas. Preciosas são as informações sôbre o culto aos antepassados e excelentes as descrições de caça e pesca. As lendas constituem boa contribuição à mitologia. E dos suaves sentimen-
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tos dêsses homens sacudidos pelas durezas da vida percebemos algo ao lermos como o pai, cantando, procura segurar no mundo dos vivos a filhinha adormecida, cuja alma corre o risco de ser levada ao céu por misteriosa ave noturna.
Recebemos também impressionantes lições sôbre as dificuldades e riscos que surgem no convívio de dois povos diferentes em idéias e comportamento. Trata-se daquilo que os etnólogos chamam de "choques culturais". Schultz conseguiu, por exemplo, induzir um índio a lhe dar um casal de mutuns em troca de um lindo facão, com a condição de não levar as aves além do Pôsto do Serviço de Proteção aos índios, considerado dentro do território umutina, pois elas eram portadoras das almas de parentes mortos, estando, portanto, fora de comércio. Schultz, desconhecendo essa circunstância, nem tendo sido informado pelo intérprete acêrca daquela condição, transportou os mutuns para o Rio de Janeiro e, voltando aos Umutina, ficou profundamente surpreendido com a franca hostilidade com que foi recebido.
Pior do que êste caso foi para o pesquisador, o encontro com um indivíduo que os cientistas sociais chamariam "marginal", isto é, indivíduo que se encontra entre as culturas de dois povos, sem pertencer inteiramente a nenhuma delas. Era o intérprete Kupo, índio umutina que, embora tivesse sido criado entre os brancos e conhecesse o português, não conseguiu ser considerado como tal. Indivíduos nestas condições acabam se envenenando por ressentimentos que os levam às vêzes a cometer atos criminosos. Foi o que sucedeu com Kupo que chegou a agredir o autor, ferindo-o gravemente com facão e arma de fogo.
Tanto êsse desfecho dramático como também as lutas de Schultz contra a epidemia que assolava a aldeia umutina e contra as águas do rio para salvar do naufrágio os víveres destinados aos índios famintos são descritos com naturalidade, simplicidade e veracidade. Nesta atitude está o valor humano da obra. Comove a modéstia com que o autor confessa o mêdo que sentiu ao ver-se ameaçado pelo punhal apontado contra o seu peito, por ocasião da chamada "saudação agressiva", apesar de saber que se tratava simplesmente de uma cerimônia. Como fica ridículo, em confronto, o exibicionismo de certos jornalistas que, sôbre o sertão, só sabem apresentar, em reportagens sensacionalistas, molduras que os enquadrem como "Homens com H maiúsculo".
O presente livro, escrito por um apaixonado pela vida nas selvas, tem o valor duma boa obra de divulgação científica, ensinando a conhecer índios como são na realidade.
São Paulo, dezembro de 1953
HERBERT BALDUS