Orelha, por Pedro Agostinho (in Ribeiro 1979)

Conhecido há quase um século e desde então visitado por etnólogos, indigenistas e homens de imprensa, o Alto Xingu celebrizou-se por seus índios e pelas polêmicas que suscitou. Isolado do mundo exterior por barreiras naturais, abrigou tribos de todos os grandes grupos lingüísticos do Brasil, Aruak, Karib, Tupi e Jê, contra o avassalador avanço da civilização dos brancos. Em 1961 criou-se o Parque Nacional do Xingu, que os tem protegido contra a extinção e o esbulho de suas terras, e provocado ataques de todos os interesses empenhados em apoderar-se delas.

Berta Ribeiro está particularmente bem situada para compreender o problema, pois achou-se entre os que desde o começo se esforçaram pela fundação do Parque; mas não é um depoimento histórico o que se encontrará neste livro. Pelo contrário: será o depoimento de um dia-a-dia vivido e convivido com os índios e com os que ali orientavam a política indigenista. Não é este portanto um estudo monográfico como os que habitualmente produzem os antropólogos, nem tão pouco uma reportagem jornalística. Trata-se, na verdade, de um tipo de documento que hoje raramente alcança o grande público: o diário em que o pesquisador vai lançando suas observações e reflexões, e que, com outras notas, esquemas, gravações e fotos, fornecerá a matéria-prima da monografia que virá a escrever.

É disso que deriva, parece-me, o valor do livro, tanto para o especialista quanto para o leigo, porque ambos encontrarão aí fatos que respondam a algumas de suas indagações. O primeiro encontrará dados abundantes sobre um determinado momento da história dos Yawalapití e Kayabí, e informes sobre os demais grupos xinguanos e periféricos. O segundo, terá oportunidade de lançar um olhar sobre duas faces do trabalho antropológico. De um lado, a vida nas aldeias, sua rotina, suas dificuldades, sua beleza, e a delicada maneira de receberem estranhos e lhes darem hospitalidade; do outro, o antropólogo que além de cientista é gente, e como gente tem suas fraquezas, sua inicial dificuldade de adaptação a um mundo que é oposto ao seu e por isso mesmo o fascina, antes de lentamente o cativar. Fazendo-o, com isso, intimamente parte da existência de seus novos amigos e responsável também por seu destino ameaçado.

Tendo experiência de várias culturas, da que lhe é própria e da dos índios, e sabendo o que os espera no mundo civilizado, Berta Ribeiro freqüentemente deixa de ser simples observadora e mergulha em direção ao futuro, discutindo consigo e com outros sobre o que ele reserva e sobre como prepará-lo. Com isso, presta um serviço aos índios e presta um serviço a nós, seus colegas de profissão, ajudando a desfazer a popular idéia do investigador frio e alheado dos destinos dos povos que estuda — quando, no mais das vezes, o difícil mesmo é na observação manter a frieza…

Além da rotina aldeã, encontrará aqui o leitor a viagem rio abaixo, pelo Culuene e Xingu, a progressiva influência civilizada sobre as tribos do norte, a composição genealógica e demográfica de grupos residenciais visitados, e descrições dos aspectos materiais da cultura nativa. Neste último aspecto, seu foco de pesquisa, a autora retoma uma tradição lançada pelos que primeiro exploraram a área, e deles marcadamente Max Schmidt e Karl von den Steinen. Merece, por fim, nossa especial atenção e reflexão o que se refere às relações entre os índios, a equipe que dirigiu o Parque à época do trabalho e os objetivos indigenistas desta última, com o estímulo que dava aos contatos com índios de fora dele — como os Xavantes que estavam de visita: com isso, emergia uma consciência indígena mais ampla, e alerta para os partilhados problemas de sobrevivência comum.

Pedro Agostinho

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