- In Galvão, Eduardo. 1979. Encontro de sociedades: índios e brancos no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
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PREFÁCIO
… e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se banhe em ironia.
Carlos Drummond de Andrade
No dia em que soube da morte de Galvão, lá de onde estava, escrevi:
Saudades do Galvão
Morreu meu amigo Eduardo Enéas Gustavo Galvão, filho da Letícia, marido da Clara, amado de seus tantos amigos. Todos morremos um pouco com ele. Nossa família de etnólogos brasileiros, tão pequena, está mais desfalcada ainda. Gosto demais de pertencer a ela, assim como Galvão também gostava.
Na geração dos pais fundadores, temos três figuras esplêndidas: Herbert Baldus, poeta-cientista, teutônico, mulherengo, prussiano, romântico e antifascista. Foi quem nos trouxe as luzes de Thurnwald, que nos livraram de tanta tolice norte-americana; mas foi principalmente quem nos tangeu para o estudo dos índios lá nos matos onde eles viviam. A ele devemos também haver organizado criticamente a bibliografia etnológica brasileira, desmonopolizando a informação livresca que tantos tolos, anteriormente, em seu primarismo, escamoteavam e escondiam.
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O segundo foi Curt Nimuendajú, ele também alemão de origem, mas acaboclado e naturalizado e até transfigurado em índio Guaraní que viveu uns tempos com uma índia Canela e se casou com uma caboclinha de beira-rio em Belém do Pará. Foi Curt quem mais soube dos índios do Brasil e quem mais nos ensinou sobre sua mente e seu ser. A obra dele, sozinha, é maior e mais importante do que a soma das de todos nós que fizemos etnologia antes e depois dele, até hoje em dia. Pena é que nesse país em que se publica tanta besteira, não se tenha editado até agora seus livros só encontráveis em alemão, francês e inglês. Isto, apesar de que uma institução tão vetusta como o Museu Nacional, se tenha comprometido formalmente a publicá-los quando de sua morte, há mais de trinta anos. Esta era, aliás, das nossas vergonhas culturais, uma das que mais vexava a Galvão.
A terceira figura daquela geração de fundadores é Charles Wagley, gringo de esquerda, casado com a brasileira Cecília, abrasileirado ele também, que aprendeu português no Araguaia e ainda fala com pausa e sotaque ianque-goiano. Bonachão, bom como poucos para tomar um pileque e travar uma discussão ferrada. Sentimental e lírico. Tem muitos méritos, mas principalmente o de haver pastoreado Galvão nos seus primeiros passos de etnólogo.
Na geração seguinte, que é a nossa, temos também três heróis. Um é Florestan Fernandes. Ex-garção, sério, amoroso, obstinado, lúcido, que com a cara-e-a-coragem estabeleceu o padrão de carreira universitária entre nós, colocando-o em nível tão alto de rigor científico e de comprometimento político que a USP destes dias de iniqüidade teve de aposentá-lo. Florestão nunca viu um índio, mas leu, criticou e interpretou para nós tudo que se escreveu sobre eles. Admiravelmente.
O segundo dos grandes etnólogos naturalmente sou eu mesmo — e dos melhores — mas ando tão modesto que hoje não falo de mim.
O terceiro foi Galvão, à distância o melhor de nós. Como gente, um cavalheiro discreto e generoso, como seriam os ingleses, se existissem. Como amigo, incomparável de atento, afetuoso e leal. Como etnólogo, ajudou Wagley a compor a imagem que temos dos Tapirapé e dos Tenetehara em admiráveis monografias; fundou os estudos de aculturação indígena entre nós; descobriu o país do uluri que é o me-
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nor biquini deste mundo; mapeou as áreas culturais do Brasil indígena; reabriu as exposições do Museu Nacional, fechadas há décadas e que depois dele voltaram a se fechar. Até quando?
Mas é muito mais o que devemos a Galvão. No Servico de Proteção aos Índios, ele se esforçou como ninguém para ajudar a criar o Parque Indígena do Xingu, que salvou os índios xinguanos do avassalamento. E tentou — com menos sucesso — salvar também as outras tribos, como o principal assessor do melhor diretor que aquele órgão teve: Malcher. Juntos, Galvão e eu organizamos no Museu do Índio o primeiro curso pós-graduado de formação de antropólogos que se ministrou no Brasil e que se esgalhou depois em muitos outros. Galvão teria também publicado sua Suma Etnológica Brasileira, urna nova versao ampliada, melhorada e atualizada do Handbook of South American Indians — que foi a tarefa que se propôs como chefe do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília — e que hoje existiría, se nossa UnB não tivesse sido avassalada.
Muito mais coisas assinaláveis fez Galvão, como reativar o Museu Goeldi que modorrava há muitas décadas. Outras, invejáveis, como amar a Clara; curar-se de ressaca tomando tacacá-no-tucupi; e gostar desveladamente da Amazônia, a cujo estudo dedicou a maior parte de sua vida.
Estou a vê-lo dentro de mim, vermelho, escondido atrás do narigão, rindo-se irônico de minhas tiradas: Macunaíma, diria. Mas se ele era o próprio Macunaíma, como não falar assim a propósito de sua morte? Um Macunaíma de muito caráter, tanto para usos bem-humorados e amistosos, como para brigar quando preciso; coisa não rara hoje em dia.
Galvão era homem capaz de admirações e de indignações; dado a causas em que acreditava e a que se devotava com empenho e ousadia. Três, principalmente, porque hoje o meu ritmo é trinário. Primeiríssimamente, aos índios que ele amava e sofria ver se aculturando e avacalhando. Quisera salvá-los, e nisso teria ocupado sua vida inteira, se os mandantes destes brasis prestassem. Outra causa de Galvão era o povão pobre e sofrido, sobretudo a caboclada amazônica, que ele via como índios destribalizados esperando o tempo em que a vida voltasse a ser solidária. A terceira causa de Galvão decerto havia, mas eu não me lembro, agora. Ainda não.
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Isto escrevi, então, ainda crispado pela notícia da morte do amigo queridíssimo.
Conheci Galvão na sua casona na rua Mariz e Barros, na Tijuca. Nós ambos muito jovens, igualmente apaixonados pela poesia (Galvão poetava) e por nosso oficio de etnólogos andarilhos, estudando índios pelos brasis interiores. Convivemos por décadas. Às vezes trabalhando juntos, primeiro, nos bons anos nossos de antropólogos do Servico de Proteção dos Índios, para onde o levei; depois, na Universidade de Brasília, que ele foi me ajudar a criar, incumbindo-se da implantação do Instituto Central de Ciências Humanas. Mesmo distantes, sempre nos soubemos e nos comunicamos; seja quando eu o visitava, sempre admirado de ver aquele carioca tijucano vivendo anos-a-fio sem tirar pé de Belém do Pará senão para ir às aldeias; seja através de cartas que até no exílio me chegavam vez-por-outra, sempre marcadas daquela aguda inteligência arredondada por uma bondade insopitável e irizada por uma ironia risonha que mofava de si mesmo e de todo mundo.
Com os livros de Galvão aqui diante de mim, medito sobre o papel que ele exerceu e sobre as lições que nos dá. Quanto a seu desempenho científico, verifico que de 1940 a 1972, quase ano-após-ano, Galvão se exerce como etnólogo de campo. Assim é que estuda em suas aldeias os Tapirapé (1940), da região do Araguaia; os Tenetehara (1941/2-1945) do Pindaré, no Maranhão; os Kaiuá (1943), do sul do Mato Grosso; os seus queridos Kamaiurá e outros grupos do Alto Xingu (1947-1950); e também os Juruna, os Kaiabi e os Txikão que lá foram ter (1964/65/66/67). No extremo norte, estende suas pesquisas aos Tirió (1960) da serra do Tumucumaque e aos Baniwa e Tukano e outras tribos do rio Negro (1951/52-1954/ 55-1972). Sobre cada um destes povos nos lega os documentos de suas observações científicas e o testemunho de sua solidariedade, nas providências que toma para socorrê-los em suas carências maiores.
Muitos temas atraíram o interesse científico de Galvão, desde o parentesco que é gramática tão estéril quanto prestigiosa da etnologia acadêmica; até a cultura material, que ele focalizou em três estudos exemplares; sobre o propulsor, sobre o artesanato e sobre o cultivo da mandioca, do milho e da batata doce. Interessou-se também pela religião indígena, em suas expressões xamanísticas que ele sondou incansavelmente, sempre encantado. Outro tema de interesse supremo para Galvão, que ele versou ao longo de sua vida inteira, foi a análise do duplo trânsito da condição de índio tribal à de índio genérico, destribalizado, e deste à de tapuia acaboclado, como os que ele encontrou, perplexos, por toda a Amazônia. Sua
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principal contribuição à etnologia talvez seja a classificação das áreas culturais indígenas do Brasil. Com respeito ao papel de Galvão como humanista, recordo aos que pensam, piedosos, que ele teve uma vida exemplar, sacrificada à ciência e aos índios, vivida penosamente em largos períodos na floresta virgem, que tudo isso, na verdade, foi o melhor e mais gozoso de sua vida. A aparente generosidade de vidas altruístas, dedicadas a servir, como a dele ou as dos irmãos Vilas Boas, esconde um componente egoísta que merece atenção: eles, na verdade, escolheram para si a melhor forma de existência que é a do convívio generoso. Um jovem armado de muita ambição, se for sabido, em vez de deixar-se recrutar e estiolar como burocrata ou tecnocrata, negocista ou doutor, serviçal de alguma multinacional, prefeito ou professor, irá edificar sua vida como a de Galvão e a de Orlando, descuidado de galas e pecúnias, e só ocupado do humano convívio com homens como só os índios ainda são.
Seu desempenho foi o do maior antropólogo humanista que tivemos. Tão devotado a sua ciência para que tanto contribuiu, como ao esforço de fazê-la leal e útil aos povos que estuda. Sua preocupação de devolver aos índios o que deles apreendia, contrasta tanto com estes tempos sovinas de tanto antropólogo pedante e conivente que todos nós que convivemos com Galvão precisamos falar dele incansavelmente. Recordar, por um lado, a simplicidade e o rigor de seu desempenho científico de etnólogo preocupado em registrar documentadamente e assim salvar para a ciência as faces do fenômeno humano que se descaracterizam aceleradamente debaixo de nossos olhos. E, por outro lado, seu senso de problema, que convertia suas pesquisas de campo em estudos temáticos comparativos que contribuíam efetivamente para a ciência em lugar de contentar-se com o papel fútil de ilustrador bizarro das teorias alheias que estão em moda, com exemplificações exóticas brasileiras.
Graças a esta postura, Galvão produziu o Encontro de Sociedades que se enfeixa neste volume e que, sem qualquer dúvida, será reeditada muitas vezes no futuro, tal como sucede hoje com os clássicos. Assim será, porque, nela há, sobre cada tribo que Galvão estudou, notícia original, copiosa e confiável, para que possa ser reinterpretada, em qualquer tempo, à luz de novos esquemas conceituais. É desta etnologia que mais necessitamos. É esta postura leal a que os índios esperam dos antropólogos que fazem a vida garimpando nas suas aldeias.
Darcy Ribeiro
Rio, setembro, 1978