- Correio da Manhã; Roquette Pinto. 1913. O dr. Roquette Pinto fala-nos sobre a sua excursão ao Matto Grosso. Correio da Manhã, anno XII, n. 5.158, 15 de março de 1913. Rio de Janeiro.
O BRASIL DESCONHECIDO
O dr. Roquette Pinto fala-nos sobre sua excursão ao Matto Grosso
Os costumes e os usos dos indios Nhambiquáras
Convidados para assistir á conferencia que o dr. Roquette Pinto realizará hoje, á noite, na Bibliotheca Nacional, sobre a sua excursão scientifica a Matto Grosso, procurámol-o hontem, com o fim de obter de s. s. uma entrevista.
O dr. Roquette Pinto recebeu-nos em seu gabinete de trabalho, no Museu Nacional.
— Desejamos dizer aos nossos leitores alguma coisa sobre a viagem que o doutor acaba de fazer á Serra do Norte, no Matto Grosso. Póde s. s. fornecer-nos assumpto?
— Antes de mais nada, cumpre-me informar que a minha viagem ao Matto Grosso não foi para explorar a região, porque já o fez o Coronel Rondon. Fiz apenas uma excursão de estudo, de que darei conta na conferencia de amanhã.
— Houve algum motivo mais forte que decidisse s. s. a essa grande jornada?
— Como sabe, em 1907 o coronel Rondon, chefiando uma commissão constructora de linhas telegraphicas, encontrou uma tribu de indios conhecidos tão sómente pelo nome e a ferocidade que a caracteriza — os falados Nhambiquaras.
Propuz ao Museu effectuar uma peregrinação scientifica, antes que o fizessem os allemães que muito se interessam pela ethnographia brasileira. Aqui vê o senhor — e o dr. Roquette mostrou-nos uma revista escrita em allemão — um longo artigo referente ao Congresso Americanista de Londres, para o qual enviei uma nota relativa aos indios Nhambiquaras, encontrados, havia pouco, pela commissão Rondon.
— Poderia narrar-nos a sua viagem e as condições em que a fez?
— Parti do Rio em julho do anno passado, com uma verba de 5:000$000 concedida pelo Museu. Fui até São Luiz de Caceres, no alto Paraguay, seguindo desse logar, a cavallo, para Tapirapuan, onde existe um deposito geral de linhas telegraphicas. Ahi, graças á boa vontade que encontrei da parte da commissão Rondon, consegui organizar duas tropas, porque fui acompanhado do tenente Pyreneus de Souza, official da commissão, o qual prestou relevantes serviços ao Museu.
As duas tropas levavam generos, apparelhos scientificos e presentes para os indios, que gostam extraordinariamente de phosphoros. Depois do machado de pedra, a dadiva mais preciosa para elles é o phosphoro.
Eramos sete homens com 30 animaes. Deixámos Tapirapuan em demanda de um caminho auxiliar praticado no sertão bruto pela commissão Rondon, afim de por elle serem trazidos generos ao acampamento da mesma. Por essa estrada passaram os seringueiros que foram explorar os seringaes da região. Nós andámos por ella 38 leguas até ao rio Juruena, no ponto em que o atravessa a linha telegraphica.
Esse logar e suas immediações são povoados pelos indios Parecis, porque os Nhambiquaras habitam do Juruena em deante, plena Serra do Norte. Assim, tivemos de caminhar mais 40 leguas, perfazendo com o que já haviamos viajado até ao Juruena, cerca de 100 leguas para encontrarmos os primeiros Nhambiquaras, que vivem em grupos.
— E quanto aos estudos feitos por s. s.?
— Durante um mez que estivemos no convivio dos Nhambiquaras pude, obedecendo a certa ordem e methodo, obter pesquisas anthropologicas, anatomicas, anthropometricas e tomar photographias e filmes cinematographicos, de que serão feitas projecções na conferencia que devo realizar amanhã. Pude observar que os Nhambiquaras, como já referi, habitam em grupos toda a Serra do Norte. Vi varios desses grupos, com os quaes nos comunicavamos por meio de signaes.
Ao cabo de trinta dias, havendo logrado verificações satisfatorias e estando as tropas esgotadas pela carencia de pasto, pois estavamos em matta virgem, resolvi voltar a dar conta da missão de que fôra incumbido.
— Quaes os resultados a que chegou s. s.?
Consegui mensurações anthropométricas de homens e mulheres Nhambiquáras (é a primeira vez que se consegue medir taes indios). Verifiquei molestias, descobrindo uma dermatose peculiar a estes aborigenes, do effeito da qual também trouxe photographias.
Truxe [sic] um vocabulario que vem completar alguns já conhecidos por intermedio da commissão Rondon. Com o tempo, será esse vocabulario augmentado.
Pude classificar esses indios com a ajuda do vocabulario e de outros dados ethnographicos; elles differem muito de seus vizinhos.
Além das observações ethnographicas truxe [sic] ainda 100 clichés da região e dos indios, bem como 2.150 especimens para o Museu, fornecidos pelo coronel Rondon. Essa collecção é a maior que o Museu tem recebido e seu valor é excepcional, por isso que nenhum outro museu possue exemplares semelhantes aos que a compõem. Possuimos duplicatas, que desfaremos, trocando com outros estabelecimentos congeneres europeos, principalmente allemães, que muito se interessam pello Brasil.
A descoberta do coronel Rondon é, pois, de summa importancia, porque ninguem suppunha que o Brasil ainda tivesse indios da edade da pedra. A repercussão que tal descoberta teve na Europa, deprehende-se do interesse que despertou no Congresso Americanista de Londres, conforme acabamos de verificar pela publicação de uma importante revista de sciencias.
— Que nos diz s. s. sobre os costumes e usos dos Nhambiquáras?
— Póde dizer-se serem elles a população mais atrazada da América. Andam completamente nús, comem de tudo, até piolho, servem-se de armas de pedra, fazem fogo pela fricção de dois vegetaes um com o outro; contudo, forçados pela necessidade, já cultivam mandioca e milho, caçam, pescam; seus costumes são muito simples; não tem ritos nem practicas religiosas de especie alguma. Não possuem redes. Desconheciam, até o dia de nossa chegada, todos os nossos animaes domesticos. Depois que conheceram o burro, tornaram-se temiveis apreciadores da carne desse animal, o que constitue serio embaraço para a commissão Rondon. Dormem no chão, em roda de uma pequena fogueira. É-lhes estranho o cachimbo; fumam cigarro, o que desfaz a lenda da fumaça da paz trocada com o hóspede.
— São muito numerosos os Nhambiquáras?
— O coronel Rondon calcula haver alguns milheiros; comtudo, não se sabe ainda do numero total delles e de suas aldeias.
— Quanto ao nome da tribu, não haverá engano?
— Tenho razões para crer que a sua etymologia não está na lingua que falavam. Nhambiquára é palavra que elles desconhecem, pois cada grupo tem a sua designação.
Destes, os principaes são: Kokô-zú, Anum-zê, Uaint-taçú, Tagnaní.
Este ultimo parece ser o grupo dos Tamararis, que vêm nas antigas cartas geographicas.
Obtida da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional e enviada por Renato Nicolai, a presente entrevista foi transcrita manualmente por Eduardo R. Ribeiro em janeiro de 2024. Para sugerir correções à transcrição, entre em contato com os administradores do site.