Pórtico [carta a Nunes Pereira] (in Castro 1968)
  • In Castro, Ferreira de. 1968. O instinto supremo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
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Meu Amigo:

Um dia, já não sei há quantos anos desaparecído, mas certamente há mais de vinte, chegou, enfim, a mancheia de terra do longínquo seringal onde vivi; chegou numa caixita de papelão, que a viagem maltratou e eu conservo ainda, um pouco a modo de relíquia.

Havia-a pedido a outrem, mas foi-me remetida por si, depois de encontrar a minha carta solicitante olvidada entre as fôlhas de velho dicionário, amarelecida pela luz a extremidade deixada à vista; por si, que já nesse tempo entregava, perdulária e amorosamente, a sua vida e a sua paixão de biólogo, de etnógrafo e de etnólogo ao estudo das expressões

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físicas e humanas da floresta imensa; por si, caro Nunes Pereira, que eu não conhecia ainda.

Mais tarde, numa das suas deslocações sôbre as veias da Amazônia, cujo mistério renasce logo após cada violação, como ressurge o do nosso corpo a seguir ao trânsito dos Raios X, você tornou a desembarcar no seringal Paraíso, pensando de novo em mim. E desta feita buscou pacientemente, nos antigos livros daquele escritório que tinha dois belos crótons bicolores em frente da janela e estava ainda como eu o havia freqüentado, a minha conta ali, entre as de outros párias, a minha vida sintetizada em algarismos, como é de bom e corrente uso no mundo em que vivemos; neste caso poucas cifras, pois eu ganhava dez tostões por dia. E pelo mesmo correio recebi esse inesperado documento, num jornal reproduzido, e a imagem que a sua máquina fotográfica extraíra do barracão onde o final da minha infância e a minha adolescência trabalharam quatro anos infindáveis, que cada vez me parecem mais inverossímeis; a imagem do barracão e da sapotilheira que o antecedia, com o tronco enquadrado por um banco, meu assento eleito ao cair das tardes, para ler, sonhar e desesperar-me ante um futuro que eu desejaria sem limites e via-o sempre limitado pelas ribas do Madeira, que fluía diante de mim.

Já nesses dias, que as suas espontâneas remessas, impregnadas de delicadeza, dir-se-ia mesmo que de poesia romântica da parte dum homem devotado à ciência, de súbito me recordavam de modo tão emotivo, as marchas punitivas contra os Parintintins, através da floresta cercada e espinhosa, como se ela própria fosse uma discordância, haviam sido travadas em todos os seringais daquela área, por influência de Rondon, grande fautor de humanitarismo.

Eram o meu terror esses índios. Quase criança ainda, arribada dum meio diferente, quando caminhava pelos varadouros que ligavam as barracas dos pobres cearenses e maranhenses, dispersas na floresta, separadas por horas e horas de distância, esperava sempre ver os Parintintins surgirem de detrás das árvores, as flechas já nos arcos retesados, e abaterem-me num momento e cortarem-me a cabeça e sumirem-se de nôvo, deixando regressar o pesado silêncio da mata, que só por si me atemorizava intensamente. E foi então que principiei a admirar, com perturbante estranheza, aqueles homens

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do seu país, que sorriam do meu receio, como se fôsse apenas infantil. Aquêles homens que todas as manhãs, e quase todos sem armas, metiam à brenha ameaçadora para ganhar a sua vida infeliz, sabendo perfeitamente que dum instante para o outro podiam ser decapitados: aqueles desconhecidos heróis populares, irmãos desses outros de que me ocupo neste romance, com o mesmo amor fraternal que você lhes dá e é a razão por que hoje lhe escrevo estas linhas.

Não podia eu, nessa época em que mal começava a alvorecer-me o espírito, imaginar que no futuro consideraria os Parintintins de maneira bem distinta daquela com que os julgava então; e que iria utilizar até a sua selvageria antiga como semente dos temas que se entrecruzam, se insinuam apenas ou se desenvolvem nìtidamente aqui. Mesmo depois de haver, muito mais tarde, numa hora porventura leviana, prometido a Rondon este livro, largos anos partiram, inquietos, perplexos, antes da promessa se cumprir.

É que, embora no vasto e diverso Mundo numerosos romancistas tenham edificado as suas obras, tantas delas tocadas de perenidade, num só meio ambiental, terrestre ou marítimo, citadino ou províncias a dentro, em planuras e montanhas, eu sempre preferí um novo território literário para cada nôvo romance. Seduz-me auscultar os caminhos que ainda não trilhei, estudar as atmosferas que a minha pena ainda não captou, desvelar o que é inerente a cada terra; atraem-me as próprias dificuldades e assusta-me a eventualidade de repetições.

À Amazonia já eu entregara muito da minha existência e muito mais ainda da minha alma: deslumbrara-me a sua imponência, conhecera-a no seu âmago, andava-me sempre na memória. E se lá voltasse literariamente, mesmo sendo de todo diferente o problema, decerto haveria quem julgasse ir eu tentar uma recidiva da benevolência concedida ao primeiro trabalho que lhe dediquei — e essa idéia me vexava.

Mas se, em alguns momentos, os dois recifes se apresentavam diante de mim bastante fortes para me levarem a diferir a construção da nave projetada, noutros pareciam-me simples maravalhas erradias, balançando-se a superfície dum mar profundo, coisas de somenos, se as comparava à justiça de preitear a orientação moral dum grande homem, as assom-

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brosas jornadas da sua hoste e dos seus discípulos, o espírito imensamente compreensivo e generoso do seu povo.

Entretanto Rondon falecia, deixando ainda mais viva do que até aí a promessa que lhe havia feíto; e outros livros meus, aceites também com indulgência, pareciam afastar a hipótese de que eu voltava ao mesmo caminho para colhêr, em planta marginal, a flor duma nova generosidade.

Em 1959, encontrando-me eu no Rio de Janeiro, o nosso amigo Jaguaribe de Matos, companheiro de Rondon e emérito cartógrafo das suas expedições, perguntava-me de repente, à entrada do Museu do Índio:

— E êsse prometido livro quando aparece?

Aqui está. Escrevê-lo tornara-se uma imposição da minha consciência. Embora enraizado num fato histórico, este exame dum problema moral que vem de muito longe e dum heroísmo popular sem espadas, sem carabinas e sem sangue, esta epopéia vivida apagadamente em dias ainda recentes, ignorada do Mundo e da própria maioria dos brasileiros, é um romance. É romance, mesmo quando na ação comparecem, ao lado das que foram imaginadas, algumas personagens que existiram em carne e osso e com sacrificio, pertinácia e coragem se entregaram à causa que serviam.

Fiel à realidade literária, que pelo seu poder condensador e harmonizante é, como de há muito se sabe, mais convincente, tantas vezes mais verossímil e mais verdadeira do que a da própria vida, em numerosos passos desta obra rompi deliberadamente com a história. Procurei que os seus heróis não parecessem mitos, que os seus atos não segregassem a incredulidade que brota das fábulas, que as suas virtudes emergissem da própria condição humana, como em todas as épocas foi verdade, antes dos acontecímentos se tornarem históricos. E assim, por entre tantos problemas confluentes, tentei averiguar, submetendo-as à prova psicológica, as possibilidades duma idéia nobre sobre o instinto de conservação dos homens que habitam estas páginas e moralmente não podiam, adeptos que eram de Rondon, defender as suas vidas, matando aqueles que se empenhavam em matá-los. E agora

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inteiramente fiel à História, o livro que hoje remeto, meu velho Nunes Pereira, dirá se eles venceram ou não o instinto supremo lá onde o Mundo guarda ainda, como nos seus dias iniciais, tantos e tão complexos enigmas.

Ferreira de Castro

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