- Tinhorão, José Ramos. 1972. A Deculturação da Música Indígena Brasileira. Revista Brasileira de Cultura, ano IV (julho/setembro 1972), n.º 13, p. 9-26. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Conselho Federal de Cultura.
Em A Deculturação da Música Indígena Brasileira (1972), o renomado crítico musical e historiador José Ramos Tinhorão apresenta um fascinante panorama da formação da cultura brasileira nos primeiros séculos da colonização, aferindo o peso (modesto, segundo conclui) da contribuição indígena a nossa música. Apesar de várias "colocações inaceitáveis" (Hartmann 1984:608-609), o artigo faz excelente uso das fontes originais, o que o torna leitura mais que recomendável para cursos de introdução à cultura brasileira.
Para mim, no entanto, um dos aspectos mais instrutivos da leitura que Tinhorão faz das fontes é a constatação de que um dos trechos mais dramáticos da biografia do "Taumaturgo do Brasil" — a execução do huguenote João Bolés, narrada na Vida do veneravel Padre Ioseph de Anchieta (Vasconcellos 1672) —, em vez de constituir-se em uma aberração na vida do gentil padre que falava Tupi com os passarinhos, era uma parte integral da visão missionária de Anchieta, visível também no trato com os índios. Assim como na execução do herege, matar o índio em sua indianidade era, afinal, essencial para que se lograsse a conversão das almas:
Um acontecimento da vida do próprio padre Anchieta, embora de forma alegórica, serve hoje para exemplificar o tipo de destruição cultural bem intencionada promovida pelos Jesuítas, certos de estarem com sua intervenção favorecendo não a morte, mas a salvação daqueles a quem aniquilavam. Tendo em 1567 o governador do Rio de Janeiro, Mem de Sá, condenado à morte o protestante João Bolés, que se deixou ficar no Brasil com três companheiros após a derrota de Villegaignon, o padre José de Anchieta obteve prorrogação do prazo da execução para tentar convertê-lo ao catolicismo antes de morrer, segundo Simão de Vasconcelos. Anchieta conseguiu, afinal, com que Bolés objurasse de sua heresia, ficando pronto para morrer na fé católica. Chegado o momento da execução, porém, como o carrasco, "pouco destro no ofício, detinha o penitente no tormento demasiadamente…" o padre Anchieta, receando que a demora fizesse João Bolés voltar atrás na sua conversão, "entrou em zêlo, repreendendo o algoz e instruiu-o êle mesmo como havia de fazer o seu ofício com a brevidade desejada." Para que vivesse a fé, era preciso, pois, segundo Anchieta, que morresse o antigo hereje [sic]. No plano das relações dos Jesuítas com os indígenas, para que triunfasse a cultura Européia era também preciso que morresse a dos índios. E foi o que aconteceu." (Tinhorão 1972:25; grifos meus).
O artigo de Tinhorão, pouco divulgado entre etnolinguistas e antropólogos, oferece um contraponto realista ao romantismo que ainda predomina no imaginário popular, que vê o uso de elementos da cultura indígena pelos jesuítas como um sinal de tolerância e inclusão. Uma das consequências desse romantismo é a idéia de que o Tupí Antigo, registrado pelos jesuítas, seria a "língua original" do Brasil, ignorando o fato de que seu sucesso se deveu principalmente a sua utilidade como ferramenta na expansão e consolidação do domínio colonial português, em detrimento da diversidade original — lingüística e cultural — do Brasil indígena (cf. Ribeiro 2016).