As preocupações de Stephen Baines com os problemas relativos ao contato interétnico são antigas. Já em sua dissertação de mestrado, realizada na Universidade de Cambridge, sob orientação de Alan Macfarlane, fazia uma apreciacao de textos
brasileiros que tratavam do tema.
Certamente, ao matricular-se no Doutorado em Antropologia da Universidade
de Brasília e propor como trabalho de pesquisa o estudo dos Waimiri-Atroari, nao
pretendia simplesrnente se ater as relacües entre os mesmos e os representantes da
sociedade brasileira, mas também fazer urna descricao e análise do sistema sóciocultural que esses índios até entáo mantinham.
Mas ele encontrou os Waimiri-Atroari numa situacao muito especial. Após secular contato conflituoso com a populacao regional, os Waimiri-Atroari estavam
a merce de urna frente de atracao constituída por numerosos funcionários da FUNAI. Nao que a situacao dos Waimiri-Atroari fosse essencialmente diferente daquelas vividas por outras sociedades indígenas nos seus primeiros anos de contato,
aceito ou imposto. Mas todos os problemas enfrentados pelos indígenas nessa situa.-
cao pareciam ter suas cores mais acentuadas no caso dos Waimiri-Atroari. De$se
modo, o contato interétnico junto aos postos de atracao se impós como tema ao pesquisador.
Ao esperado desconforto de toda pesquisa de campo, vieram acrescentar-se a
desconfianca e hostilidade ao antropólogo, tanto por parte de funcionários ocupantes de altos cargos da FUNAI, como principalmente daqueles diretamente envolvidos com os Waimiri-Atroari, quando nao de representantes de empresas com
interesses na área e até de entidades indigenistas alternativas. Mas, como bom pesquisador, Stephen Baines soube reverter a situacao a seu favor, transformando os
mal-entendidos, as meias-palavras, os cochichos, as zombarias, os insultos, as proibicües arbitrárias de que era objeto, em preciosos dados a serem examinados. Aprendeu a tomar sua própria presenca num determinado momento e local como
catalizadora da expressao de preconceitos, atitudes de dominacao ou subordinacao,
conflitos, identificacües. E, assim, Stephen Baines foi desvelando passo a passo interesses, expectativas, receios, por trás dos discursos e das acres dos mais diversos
agentes envolvidos na situacao, desde as falas e relatórios apresentados ao pesquisador supostamente ingenuo ainda nao introduzido na área indígena até, durante e
após a pesquisa de campo, os cuidados, as reelaboracües, as conversas como etnólogo, culminando com evitacües e recusas, pois talvez já soubesse demais.
Se, por um lado, Stephen Baines se mostrou um etnógrafo atento e perspicaz,
a quem· os próprios sonhos serviam como pistas para a elucidacao de problemas,
por outro, manteve-se sempre cuidadoso e informado com respeito a teoría. Sua.
interpretacao se mantém dentro das tradicües dos estudos brasileiros de contato interétnico, ainda que se colocando cm posicao bastante autónoma com respeito aos
mesmos. Afinal foi prCFiso dar conta de urna situacao em que tudo é mais acentuado
que em outras áreas de contato interétnico: a manipulacao da identidade chega a
um alto grau de mutabilidade e sutileza; a acao das frentes de expansao torna-se
insignificante diante dos efeitos da instalacao das grandes obras; n~é>es e conceitos
antropológico~ reinterpretados, sao incluídos no discurso dos agentes do contato,
que também reinterpretam os acontecimentos históricos regionais; o próprio caráter
contraditório das rel~0es entre brancos e índios chega ao ápice quando os primei-
- ros ensinam os Waimiri-Atroari a se comportarem conforme a imagem que fazem
dos segundos.
Navegando em águas tao revoltas, Stephen Baines mantém-se equidistante das
várias ideologías - a dos indigenistas da FUNAI, a dos indigenistas alternativos,
a da popul~io regional, a dos índios de outras ~tnias que trabalham na frente de'
atr~io, a das mineradoras - mas, dado ao seu acentuado relativismo, sem considerar sua própria interpre~io como mais explicativa que as outras.
Convém lembrar que, apesar de ter escolhido a frente de atra~ao como seu tema, Stephen Baines disp0e de dados sobre a cultur~ e a sociedade Waimiri-Atroari
que poderio ser aproveitados em outros trabalhos, embora, por modéstia ou rigor,
nao os julgue satisfatórios.
Trabalhar como orientador de Stephen Baines foi sempre motivo, para mim,
de em~0es ambíguas. Se, por um lado, me era gratificante lidar com um pesquisador interessado, assíduo, que levava em consideracao todas as ponderacaes e reparos, por outro, deprimía-me ter de conhecer informac0es sobre índios em tio triste
situacio. Mas, enfim, o trabalho chegou a bom termo e vi, com satisfacáo, a banca
examinadora da tese aprová-la vivamente impressionada com seu trabalho, e mais
contente ainda fiquei coma sua merecida publica~áo.
Julio Cezar Melatti